Love Game in Eastern Fantasy como a mente de Fu Zhou e outras considerações
Talvez seja difícil que você entenda que eu gostei de “Love Game in Eastern Fantasy”. Eu gostei, mas…
Por volta de dois meses antes, eu comecei a assistir ao donghua série de animação chinesa “How Dare You!?”. Eu, – uma pessoa até então não muito ligada nem só às animações chinesas, como às animações como um todo – acabei cedendo um longo espaço mental para esses personagens cheios de reviravoltas. Durante o período de exibição, não me conformei com as legendas mal-feitas e tentei fazer legendas melhores no Amara, fui ler o livro e iniciei uma tradução para socializar para os fãs o texto original que, sem dúvidas, é a melhor novel que eu já li, muito bem estruturada, – que foi muito bem representado em sua primeira temporada no anime, e espero que o futuro drama estrelado por Wang Churan 王楚然 e Ryan Cheng Cheng Lei - 丞磊 faça jus, o que nem sempre acontece em adaptações de obras literárias em dramas chineses. Isso tudo para dizer que: eu já não contava que “Love Game in Eastern Fantasy” pudesse superar o seu companheiro no gênero transmigração.
“Jogo de Amor e Fantasia” é um drama da Tencent adaptado do livro serializado “O Guia para Capturar um Lótus Sombrio” da autora Bai Yuzhai Diao Gong, estrelado por Esther Yu Yu Shuxin - 虞书欣 e Ryan Ding Ding Yuxi - 丁禹兮 . No Brasil, a redistribuição é da Rakuten Viki e Netflix.
Entrando na história
Ao começar a assistir “Jogo de Amor e Fantasia”, logo o temor de que fosse de alguma forma semelhante a “How Dare You!?” passou, apesar de a situação de entrada ser a mesma: despertar em um mundo desconhecido sendo a vilã, a entrada da dama de companhia e o dia do casamento. Fora isso, talvez o ponto mais semelhante seja que o ator de voz dado a Ryan Ding no papel de Mu Sheng seja o mesmo dado ao tirano Xiahou Dan, de “Como Você Se Atreve!?”: Zhang Fuzheng 张福正 .
A principal diferença é que Ling Miaomiao (interpretada por Esther Yu) desperta dentro de um jogo baseado em um livro de seu autor favorito que ela não havia gostado muito: o universo dos cultivadores caçadores de demônios de “Pega-Demônios”, de Fu Zhou.
A vilã na história dele
Miaomiao, como a vilã bucha de canhão Lin Embora no livro Miaomiao e Yu tenham o mesmo nome de família: Ling Yu, recebe do sistema a tarefa secundária – porém essencial para que ela retorne ao seu mundo – de fazer com que Mu Sheng, o personagem secundário genioso e intempestivo –, chegue a um nível de afinidade de 100%, saindo de -200%. No enredo original, Lin Yu e Mu Sheng acabariam se casando, e ele humilharia continuamente a esposa por culpá-la pelo final BEbad ending de sua irmã. Posteriormente, o sistema atribui a missão de queimar o mapa que levaria diretamente à vilã, a Mulher Ressentida, para ganhar experiência. Essas tarefas, obviamente, contribuiriam para a nova narrativa diante da presença da anfitriã.
Mas a quem a trama serve ao fazer isso, senão a um autor sendo sádico com seus personagens e, de alguma forma torpe, beneficiando o seu próprio avatar no jogo? A narrativa acaba por ser a representação em si da mente do escritor, enquanto este está lidando com uma grave doença; o sistema serve como um meio de manifestação de seus desejos reprimidos. Mesmo que “Pega-Demônios” seja um mundo totalmente sob o controle de Fu Zhou, seus próprios dilemas impossibilitam que ele consiga ser o protagonista na própria obra e vida, e esta passa a ser um lugar onde ele se esconde de si mesmo, embora a obra constantemente envolva-o em suas próprias vivências através da ficção. Ainda que a interpretação esteja sempre a cargo do leitor e sua carga de vida, o texto nunca está muito além das visões de mundo de quem a escreve – vide a cena onde o Brotinho de Bambu não consegue imaginar o que Miaomiao queria dizer com um lugar para sentar e se balançar, mas Mu Sheng sim.
O pai da vida real e a representação masculina
O primeiro indício de que Miaomiao e Lin Yu tem alguma ligação transposta do mundo real se dá por meio de que seu pai ficcional tem o mesmo rosto de seu finado pai. O livro representava este personagem como um magistrado corrupto, com um final trágico por inferência de Mu Sheng. É ao conseguir que Mu Sheng tenha alguns traumas da infância supridos que Miaomiao consegue que o pai ficcional tenha um final mais feliz do que o real. A existência desse pai demonstra um conflito entre o desejo de agradar o avatar de um amor da infância não vivido, com as próprias crenças e percepção sobre o homem na sociedade.
Nós vemos que a ausência do pai de Fu Zhou é representada nas falhas do Marquês Qingyi, Zhao Qinghuan (interpretado por Joe Xu Xu Haiqiao ). Isso se repete no mestre ausente de Liu Fuyi, Mestre Wenxin (essa aliteração direta privou o espectador de saber que o nome é “Mestre que Questiona a Mente”) e, também, na ausência do próprio imperador na capital imperial. A desconstrução da figura honrada de Mu Huaijiang (pai de Mu Yao), o caráter oportunista do cultivador Guo Xiu, o vingativo Tao Ying, e o ciúmes protetivo e desconfiança de Mu Sheng com relação ao interesse de Liu Fuyi por sua irmã são outros indícios da visão de Fu Zhou sobre o masculino.
Há também os personagens que de alguma maneira representam o próprio Fu Zhou: o célebre autor que plagia as histórias de vida dos outros, o demônio da água, que tenta fazer com que sua amada saia de sua prisão no vale proibido, o dono da hospedaria que esperava a esposa retornar e o marido adoentado da demônio raposa.
O autor Sr. Jiyue é a perspectiva de Fu Zhou sobre a visão e a autocrítica que tem sobre a maneira de escrever, uma latente síndrome de impostor ao se inspirar na vida dos outros para conceber suas narrativas; por isso, Sr. Jiyue é diretamente um ladrão das histórias da vida dos outros.
Ying Zhen, o Rei Demônio da Água (que, em algumas leituras simbólicas, é o elemento representativo dos sentimentos), busca salvar sua amada. O primeiro encontro entre Mu Sheng e Ying Zhen se dá no domínio do reflexo invertido, aferindo que um personagem é o reflexo do outro. Ao passarem para esse mundo para evitar que a irmã descubra que Mu Sheng é um meio-demônio, Ying Zhen diz sobre aquele lugar: “O interno e o externo se sobrepõem, mas não estão conectados.” (内外重迭却不相通) A conexão a qual expectadores, Mu Sheng e Miaomiao são privados é a de que estamos diante de um espelho da própria narrativa. As cores preto e branco demonstram o caráter basilar da cena, enquanto o vermelho denota as feridas, o sangue e as rachaduras, compondo uma belíssima fotografia de cena. É também o Rei Demônio da Água aquele que se lamenta diante da morte de ter se privado de simplesmente estar junto a sua amada ao ir atrás de meios futuros para ficar com ela.
Outro personagem que remete à Fu Zhou é o dono da hospedaria que esperava que a esposa voltasse em cada novo amanhã e que, por fim, descobriu que a esposa só vivia em suas memórias de outros tempos. No caso de Li Zhun, o ex-comerciante adoentado que havia se casado com um espírito demoníaco de raposa acreditando que ela era a doutora divina Shiniang, retoma nem só o tema da mulher se sacrificando por seu amado, como também finalmente evidencia a temática da doença.
A mulher, a mãe e a deusa demônia
O contexto apresentado de maneira mais complexa em “Jogo de Amor e Fantasia” é o papel do feminino. O autor se compadece das mulheres ao retratar aquelas que são acolhidas por Liu Niang. É através dela que se vê um posicionamento contraditório em Fu Zhou: de que as mulheres viveriam melhor sem os homens e os filhos.
E esse viés paradoxal acaba por decorrer na dicotomia dos papeis femininos, monomiticamente distinguindo-se em mãe e/ou deusa boa e má, que no contexto do drama vem bem a calhar. A Rainha Consorte Zhou é capaz de atos crueis para causar a ascensão do filho ao trono e proteger a filha da morte, mas é ela quem ordenou que a população da montanha Qilin fosse dizimada e que 400 vidas fossem perdidas no incêndio do templo.
Assim, a própria mãe de Mu Sheng é vista como a doce e gentil Murong’er, capaz de tudo para proteger o filho e também como a Mulher Ressentida (怨女) – um nome não muito afável para retratar a vilã, quanto mais a mãe. A representação materna tanto como a protetora quanto a castradora não é incomum, e o grande conflito final do drama é para que Mu Sheng supere a própria dependência de uma mãe ausente e avance para o próximo papel feminino de sua vida: a companheira de jornada.
O verdadeiro eu como um casulo
Na mesma cena citada anteriormente no domínio do reflexo invertido, para se recuperar da batalha com o Rei Demônio da Água, é preciso que Mu Sheng retorne a quem ele de fato é. Neste momento, os cabelos acinzentados fluem para cima. A sensação visual, embora a cena represente o personagem no auge do seu poder, é de que algo não está certo. Bem, a cena teria sido melhor realizada com efeitos práticos, ao virar Ding Yuxi de ponta cabeça e aplicar o vento na direção de cima para baixo; contudo, é exatamente essa sensação que é desconfortável: um dependurado de ponta-cabeça com sua face plácida enquanto o mundo está ao contrário.
A temática de Mu Sheng ser um meio-demônio não implica apenas em uma leitura de convívio interracial, mas a ideia sobre pessoas acometidas por uma doença: desde a infância, Fu Zhou padece da doença de Moyamoya, uma rara doença que compromete os vasos sanguíneos cerebrais, o que faz com que ele se isole do mundo e das relações interpessoais, e que se espelha no comportamento de seu avatar Mu Sheng.
Privado da concretização de uma relação com seu primeiro amor, ele fez dela tanto a musa (a caçadora fundadora Mu Qingshi), como a vilã Lin Yu - a qual seu personagem estava condenado a um casamento infeliz. O sistema busca realizar seu desejo, ao fazê-la conquistar Mu Sheng.
O desenrolar psicológico do personagem Mu Sheng em relação a Lin Yu se inicia com soberba e humilhação, uma necessidade de espezinhar o objeto de seu desejo, negando a representação de sua vontade. A segunda fase, já que se trata de um game, é a covardia impossibilitante, bem relatada nas falas do episódio 17, onde ele questiona Miaomiao, sobre se gostar implica em ser obrigado a confessar seus sentimentos, mesmo que seja impossível, na visão dele, que casais tenham um final feliz.
Contudo, o que me chamou atenção foi a etapa de consumação: normalmente, para isso, o vínculo social dentro do drama é estabelecido por meio de um beijo. No drama em si, não houve beijo nem in game, nem na perspectiva real da obra, acontecendo apenas na trilha de encerramento do episódio final, sendo apenas um velho truque de câmera. Posso especular que tenha sido estabelecido em contrato, mas também posso aceitar a premissa básica, não de “Jogo de Amor e Fantasia”, mas de “Pega-Demônios”: Mu Sheng e Lin Yu não são os protagonistas, mas sim Mu Yao e Liu Fuyi, personagens que até mesmo adentraram a clássica câmara nupcial; segundo, Mu Sheng não conseguiu ultrapassar os limites de Fu Zhou, que tratava o romance de sua obra como algo distante, enquanto as cenas de luta abundavam. É Fu Zhou quem precisa sobrepor seus limites e vivenciar aquilo que deseja, não Mu Sheng.
Outras considerações
A versão brasileira do título do drama, “Jogo de Amor e Fantasia”, perde em charme em relação a variante ocidental, “Love Game in Eastern Fantasy”, que seria algo como “Jogo de Amor na Fantasia Oriental”. Porém, o belo título original (永夜星河) é apresentado em variante em língua inglesa no último episódio, como a versão revisada do título do livro “Pega-Demônios”: “Eternal Night Star River” (“Rio de Estrelas na Noite Eterna”). “Pega-Demônios” (捉妖) também é uma tradução bastante fraca para o que poderia ser “Caça aos Demônios”.
A variação de qualidade de CGI, principalmente a baixa qualidade do navio na água, é algo que acaba por compor a ideia de jogo com baixa qualidade de gráficos. O que incomoda mesmo são os baixos gráficos de cabelo, quando uma boa peruca de sempre bastava.
“Jogo de Amor e Fantasia” tem certas semelhanças com outra obra de transmigração: InuYasha. Cinco amigos: uma moça do futuro, um meio-demônio, uma caçadora de demônios, um semi-monge e uma criança fofa demônio – troque o termo “demônios” por “yōkais” et voilà.
Um presente para aqueles que começaram a assistir doramas com “Eternal Love”: Zhu Xudan, Leon Lai Yi e Yu Menglong trabalhando juntos outra vez.
Algo que eu sempre me questionei ao assistir “Jogo de Amor e Fantasia” é: “como Lin Miaomiao não reconheceu seu antigo colega de escola?” Bem, tendo iniciado a leitura do livro em que o drama se baseia, descobri que Fu Zhou era tratada como “a rainha dos romances melodramáticos”. Ler isso, me fez lembrar do personagem do Danny Glover, em “Máquina Mortífera”.
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