segunda-feira, 14 de outubro de 2024

O Cansaço da Flor Primaveril | Prólogo

 Antes de ler:

  • Este texto é uma tradução direta da obra Chūn Huā Yàn (春花厌), originalmente escrita em chinês por Hei Yan. Todos os direitos sobre a obra original são reservados à autora. A tradução aqui apresentada é de minha autoria. Por favor, não copie ou redistribua. Leia diretamente no blog e apoie que este trabalho continue em livepix.gg/laofenghuang.
  • Os links incluídos ao longo do texto atuam como notas de rodapé para facilitar a compreensão dos termos mencionados. Sinta-se à vontade para utilizá-los quando necessário ou simplesmente ignorá-los.

 


O Cansaço da Flor Primaveril  |  Prólogo

As flores de pêssego são vermelhas, as de damasco, rosadas, e as de ameixeira, brancas; as flores de jasmim-de-inverno, em todos os galhos, balançam ao vento, e as flores de maçã-silvestre florescem livremente.


Era o segundo mês do ano, com flores primaveris cobrindo as montanhas e campos, expressando o fervor acumulado durante uma estação inteira.


No meio do terreno baldio, uma tumba solitária estava escondida sob as flores de jasmim-de-inverno que se espalhavam. Sem lápide, mas jamais esquecida.


Em pé, diante da tumba, um homem segurava um chicote. Ele vestia um traje preto tal que tinta e uma longa túnica prateada. Um pequeno sachê de perfume cor de damasco pendia discretamente de sua cintura, exalando um leve aroma de rosas silvestres. Um grande cavalo branco pastava não muito longe dali, e mais além do bosque de damasqueiros em flor, um jovem elegante segurava um cavalo e aguardava pacientemente, lançando olhares inquietos na direção do homem.


O homem levantou a mão, como se quisesse tocar algo, mas então a deixou cair rígida. Seus olhos mostraram uma expressão complexa e indescritível, que logo foi substituída por uma intensa hostilidade.
 

“Mulher, a morte é tão fácil assim?”  Ele sorriu e, de repente, levantou a mão, desferindo um golpe com a palma na tumba solitária. Em um instante, as flores tremeram, os galhos se quebraram, e as pétalas amarelas caíram como borboletas voando.


O jovem avistou de longe e, assustado, correu apressadamente. No entanto, neste breve momento, o homem já havia desferido vários golpes, fazendo a terra voar e cavando mais da metade da tumba.


“Senhor...” O jovem queria impedir, mas não ousava.


O homem não deu atenção a ele e desferiu mais alguns golpes, até que viu o corpo em decomposição da mulher. Não havia caixão, nem mesmo um pedaço de palha, apenas uma roupa rasgada, deitada assim tranquilamente na terra, enquanto inúmeras formigas e vermes se arrastavam rapidamente sobre seu corpo.


O homem apertou a mão, mas a palma, que já havia acumulado força suficiente, não conseguiu desferir outro golpe.


“O que está acontecendo?”, ele perguntou com uma voz rouca e desagradável, olhando para o rosto irreconhecível da mulher.


Da perspectiva do jovem, podia-se ver os olhos do homem, vermelhos não se sabe se por raiva ou outra coisa. Ele não conseguia parar de tremer e, reprimindo o frio em seu coração, rapidamente explicou:  “Senhor, isso é... o que a senhorita Mei Lin pediu antes de partir. Ela disse…” Ele lançou um olhar cauteloso ao seu amo e, vendo que ele não parecia impaciente, continuou: “Ela disse que, em vez de ficar presa em um caixão ou em uma esteira de palha, preferia se fundir à terra e nutrir as flores da primavera que crescem por aqui, assim ela também poderia aproveitar um pouco de luz.”


Ninguém disse mais nada. Apenas o vento frio soprava suavemente sobre a superfície do corpo, trazia o perfume das flores  que crescem nas montanhas, de modo que não se conseguia sentir o menor cheiro de decomposição.


“Ela disse mais alguma coisa?”, após um longo tempo, o homem finalmente perguntou em voz baixa, enquanto sua mão, caída ao lado da perna, tremia levemente.


O jovem não percebeu, pensou por um momento e então balançou a cabeça. “Senhor, isso é tudo.”


O pomo de Adão do homem se moveu para cima e para baixo, e então ele de repente abriu um sorriso que era ainda mais feio do que se estivesse chorando.


“Não tem... mais nada? No final, você nem mesmo…” – lembrou dele nenhuma vez, nem que fosse com ódio. Ele engoliu o restante das palavras, deixando-as apodrecer dentro de seu estômago. Então, subitamente, brandiu o chicote, lançando o corpo para fora da cova.


“Senhor!”, o jovem exclamou, caindo de joelhos diante do homem, suplicando: “Senhor, senhor… Mesmo que a senhorita Mei Lin tivesse suas falhas, quando uma pessoa morre, é como se uma lamparina se extinguisse. Por favor, permita que ela descanse em paz…”


Os olhos do homem, sanguinários como os de uma besta selvagem, fizeram o jovem calar-se involuntariamente, enquanto o longo chicote brandia, atingindo violentamente o corpo.


“Você deseja oferecer flores da primavera, mas eu me recuso a permitir!”


Com um som abafado, mais uma chicotada ecoou, enquanto trapos rasgados voaram.


“Agora você quer ficar em paz, mas eu não permito!”


A vil promessa, acompanhada de um soluço quase imperceptível, foi feita enquanto uma longa túnica prateada caía, cobrindo o corpo em decomposição sujo de terra. O homem de repente se agachou e pegou o corpo nos braços, saltando para cima do cavalo em alguns movimentos ágeis, e então galopou furiosamente através do pomar de damasqueiros em direção ao horizonte onde o céu encontra a terra.


No segundo mês do ano, as flores de pêssego estão vermelhas, as flores de damasco estão brancas, as flores amarelas de colza estão brotando por toda parte, e as folhas de salgueiro parecem um corte de esmeralda…


Em estado de torpor, ele parecia ouvir a mulher cantando baixinho em seu ouvido, como no ano passado, naquela aldeia remota nas montanhas. Ele estava deitado tranquilamente na cama, enquanto ela estendia roupas no pátio. A luz do sol penetrava através do papel de janela desgastado, dançando diante de seus olhos como uma borboleta de luz.

 

À seguir: Capítulo 1 - Parte 1.


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